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02 de novembro de 2020 - 04h 04m

O dia de finados

Compartilhamento Social

Crédito: “Todos os Santos I” – Wassily KANDINSKY

*Por Daniele Britto

Normalmente minhas publicações aqui no blog ocorrem às sextas. Não é uma regra, é uma adequação à realidade desta autora que trabalha e estuda todos os dias.

A publicação de hoje é excepcionalmente proposital. Quero dedicar linhas e entrelinhas deste texto aos que choram não apenas hoje, mas por dias ou noites. Dedico, especialmente, a todes que se foram muito jovens ou aos que, mesmo mais velhos e cansados, tinham fôlego e vontade de permanecer um pouco mais.

Enquanto escrevo, penso em quem se foi apenas por ser preto ou preta ou que, por ser mulher, teve a vida retirada por alguém que não consegue distinguir propriedade de liberdade. Penso nos corpos gays, lésbicos e trans que optaram por serem o que são e foram paralisados pelo preconceito. É impossível não concluir que morte também é pauta política e que, em muitos de nós, respinga sangue de inocentes. 

Algumas pessoas se foram dormindo; outras no meio da tarde, depois de um almoço em família. Mais de 158 mil partiram por um motivo invisível a olho nu que retira dos que ficam o direito aos ritos e homenagens de despedida.

Me solidarizo com você que perdeu uma pessoa querida ou que não tem mais aqui parte de você, como um filho ou filha. Eu não gosto de utilizar o verbo “perder”, apesar de ser o mais usual. “Perder” soa como um desleixo injusto, de quem não sabe cuidar de algo tão especial e caro. Prefiro “não tem mais”. 

Independente do que se crê, se no céu ou no Orum; se na reencarnação, no juízo ou na extinção completa da matéria; se na vida em dimensão paralela ou em tantas outras inumeráveis crenças ou perspectivas, uma coisa é comum entre os que choram: o peso da ausência.

Claro que não é necessário reservar um dia no calendário para chorar de saudade e dor. Ou de medo do vazio que parece jamais ser preenchido. Todos os dias são propensos ao luto e às lágrimas. Todo momento é adequado às preces ou ao silêncio intraduzível.

Não sei qual é a sua dor neste momento. Por quem você chora ou dedica pensamentos. Nem ao menos sou capaz de acompanhar os caminhos das suas memórias que te levam do riso ao pranto numa fração de segundos. Não serei, agora, tão crítica e política como de costume, afinal, também tenho meus encontros com a morte. 

Já fui excessivamente (ir)racional ao achar que dias assim não passavam de mera tradição eclesiástica. Mas, se eu sempre acreditei que os tidos como mortos estavam bem vivos e ativos em outros planos, por qual motivo eu, tão viva, agia como morta, não me permitindo mudar ou ressignificar este dia?

Achei motivação e consolo na solidariedade e na matemática. Em me compadecer com a dor da/dooutra/outro e dividir com ela/ele sua angústia. Mesmo com quem eu jamais vi ou verei, não é difícil essa partilha. É só se dispor ao exercício da alteridade.

Alteridade que gera empatia, tolerância, respeito e nos aproxima transcendentalmente do outro. Fernando Pessoa, quando Bernado Soares, o guardador de livros, disse: “O mundo é de quem não sente”. Tentou justificar que, os que não se apegam a sentimentos e coisas etéreas têm mais sucesso, agem melhor e com maior eficiência. Mas, longe de ser tão prático e absoluto, ao mesmo tempo conclui: “compostos de células  vivendo da sua degradação, somos feitos da morte”.

Eu diria, Bernardo, que somos feitos de vidas. 

*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs)
Mestranda PPGE/Uefs


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