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Opinião / 27 de agosto de 2020 - 10h 25m

Quando a branquitude tropeça nos próprios pés

Compartilhamento Social

Por Daniele Britto* 

Como advogada, mestranda, pós graduanda e pesquisadora que acumula olheiras e castiga a cervical ao ficar por horas estudando e escrevendo, foi impossível não ter acompanhado o caso envolvendo a professora de Direito Tributário Cátia Regina Raulino, que se identifica como uma mulher do sul do Brasil aportada na capital da Bahia. Sim, dentro da esfera da presunção de inocência ela ainda é professora, advogada, mestra, doutora, pós doutora e tudo o quanto preenche aquele invejável currículo Lattes.

Por mais que a UniRuy, a Ucsal, a UNIFACS, a Faculdade Maurício de Nassau, a Unijorge, o CEJAS do desembargador e professor José Aras e tantas outras instituições tenham varrido dos seus sites e memórias a existência de Cátia Regina Raulino, os algorítimos deixam rastros. Ou melhor: deixam à mostra provas de relevantes vínculos institucionais e estreitas relações pessoais e profissionais. Aproveito para informar à Editora Jvspodium que não dá pra apagar da memória internética que a professora Raulino também é autora do livro Direito Eletrônico, que compõe a Coleção Leis Especiais Para Concursos.

A pergunta que todos, todas e todes se fazem neste exato momento é: como ela supostamente conseguiu enganar tanta gente, por tanto tempo? Senhoras e senhores, a resposta tem duas palavras: privilégio branco.

Pela esquiva dos seus ex-empregadores e parceiros comerciais, parece que, de fato, há algo de errado nas titulações e publicações da multifacetada professora tributarista. Qualquer erro curricular desencadearia uma avalanche de consequências legais – inclusive penais que maculariam a credibilidade de tantas instituições de destaque no cenário educacional baiano e nacional.

As prováveis credenciais que convenceram os parceiros e empregadores de Cátia Raulino são de natureza biológica, mas é a sua manifestação fenotípica o grande lance. Talvez ela nem tenha precisado apresentar um documento falsificado sequer. Sua pele branca, seus loiros cabelos e sua territorialidade sulista afastaram de Raulino toda e qualquer presunção de má-fé, malandragem ou falseamento. Nenhuma mínima suspeita se lançaria sobre a intelectualidade presumida daquele sorriso com clareamento dental em dia.

Algo diametralmente oposto aconteceu com uma colega pesquisadora, mulher negra e pedagoga, ao pleitear uma vaga como professora da Educação Básica em um estabelecimento particular não muito longe da capital baiana. Relata a profissional que, além da cópia de todos os documentos pessoais e de qualificações acadêmicas, lhe foi requisitado, obrigatoriamente, uma certidão de antecedentes criminais.

Erra a empregadora em pedir toda esta documentação antes da efetivação do contrato de trabalho? Não, absolutamente. O erro perverso e seletivo está no fato de não ser assim com todo mundo. Principalmente, se esse “todo mundo” se encaixar nos padrões implantados pelos colonizadores europeus, de uma forjada superioridade intelectual e moral que tem como alicerce séculos de silenciamentos e apagamentos.

E essa lógica perversa vai além do racismo e seus diversos afluentes, alcançando os corpos em outras dimensões como gênero e sexualidade, por exemplo. Os corpos gordos ou portadores de deficiência ou velhos também sofrem em proporções diversas os estigmas e selos trazidos pelos padrões coloniais que são brancos, hétero-cis-normativos, cristãos e capitalistas.

Quais serão as possíveis consequências jurídicas, financeiras e de branding para estas instituições acaso reste comprovado terem contratado sem o menor rigor uma possível estelionatária para dar aulas, cursos e escrever livros? Estamos aguardando ansiosos as cenas dos próximos capítulos dessa bizarra história regada possivelmente a muita hipocrisia e, dando mérito à protagonista, muita criatividade.

Que a sede capitalista, desfrutada avidamente pela branquitude privilegiada (é tão redundante esta expressão), utilize os sombreiros para esconder seu vexame, sua ridicularização pública, sua seletividade perversa e não para omitir corpos enquanto continuam a tilintar suas máquinas registradoras.

E que venham os prejuízos, caso tudo – ou nada, a depender do ponto de vista – se confirme. Esta é a melhor pedagogia para os que ditam o dress code da colonialidade.

*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs))
Mestranda PPGE/Uefs


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